23 de janeiro de 2007

Aborto? Não, Obrigada*

Toda a ofensa à pessoa é uma ameaça à paz

Quem não sabe respeitar o outro, nunca saberá o que é a paz. Este respeito não se improvisa. Nasce do profundo do coração e vive dum exercício contínuo, quotidiano: de um estilo de vida que olha os outros com atenção, que não quer servir-se deles mas antes servi-los, para crescer juntos em relações mais verdadeiras e mais humanas, mais dignas para todos.
A paz no respeito pela pessoa é, pois, um hábito espiritual, uma marca que se traz dentro e irradia em tudo o que fazemos; uma virtude feita de rectidão interior, de honestidade na escolha dos fins e dos meios em ordem à acção, alimentada constantemente pela vontade firme de não fazer mal a ninguém, respeitando os direitos de todos, sobretudo dos mais necessitados. “Toda a ofensa à pessoa é uma ameaça à paz; e toda a ameaça à paz é uma ofensa à verdade da pessoa e de Deus”.
Educar para a estima e para o amor universal por toda e cada pessoa humana é, pois, a grande motivação que torna possível, necessário e belo o empenho pela paz.

A ecologia da paz requer o cuidado e a protecção do filho em gestação e da mãe

Estamos dispostos a empenharmo-nos por aqueles valores essenciais do ser humano que estão ligados à ecologia da paz?
A ameaça à paz e à convivência civil entre os homens, entre os povos e entre as culturas não está só nos conflitos armados e no terrorismo. Está também, de modo mais subtil mas não menos incisivo, nas “mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto, pela experimentação sobre os embriões e pela eutanásia”. Esta é uma das passagens-chave da mensagem de Bento XVI, que interpela particularmente a nossa consciência perante o próximo referendo sobre o aborto. Está em questão o direito à vida como verdadeira pedra angular no caminho do progresso moral da humanidade.
Uma certa cultura emergente experimenta como que uma alergia perante a afirmação da inviolabilidade da vida humana nascente. Mas a ecologia da paz implica uma ecologia da vida do ser humano. Uma elementar coerência com o empenho pela defesa da vida vegetal e animal comporta a exigência de determinados fins e meios que sejam respeitadores e protectores da vida humana já iniciada.
Verificamos com satisfação que aumenta a sensibilidade em relação à protecção das crianças, às condições dignas da maternidade, à igualdade de todos os seres humanos, à defesa e protecção do meio ambiente. Também cresce em todo o mundo a rejeição da pena de morte e da tortura, como ainda agora acabamos de constatar na morte do ex-ditador iraquiano. Mas, paradoxalmente, assistimos à banalização crescente do aborto que provoca a morte silenciosa de um ser humano indefeso e inocente.
Porquê esta desvalorização da vida humana nascente, na escala de valores? Como foi possível à nossa cultura, que se reclama humanista, pôr a liberdade humana contra a vida humana? Porquê esta distinção discriminatória entre os seres humanos nascidos e os nascituros em gestação? Porque não paramos em contemplação e reflexão sobre o momento luminoso do início da vida humana que hoje as novas técnicas põem diante dos nossos olhos? Porque é que as leis humanas parecem interessar-se mais pela protecção de certas espécies vegetais (como o cortar determinada árvore) ou animais (como os ovos de cegonha) do que do ser humano em embrião ou feto?
O fenómeno do aborto como chaga social é sintoma de um mal-estar mais profundo de cultura e de civilização, da própria sociedade. Alastra uma visão materialista que reduz o conceito de vida humana a um mero produto ou material biológico; e uma visão pragmático-utilitarista que remete por completo a sensibilidade moral para as fronteiras dos custos, do bem-estar, do conforto etc. E, então, a nossa sociedade torna-se simultaneamente frágil e “dura” em função da lógica utilitarista e competitiva.
Não ignoramos que, muitas vezes, a decisão de abortar é fruto de grandes sofrimentos e angústias (sem excluir as pressões), que é um verdadeiro drama para muitas mulheres. Mas pensamos que a um drama não se responde com outro drama: o de destruir uma vida humana que desabrocha e que é o elo mais fraco em todo este processo. A resposta verdadeiramente humana e humanista a este drama é um projecto solidário e galvanizador de todos os recursos da sociedade civil e do Estado, para oferecer todo o cuidado, acolhimento e protecção de ordem social, económica e psicológica tanto ao filho em gestação como à mãe que o gera. A liberalização do aborto, sob a forma encapotada de despenalização, não é a resposta digna e condigna. É uma fuga em frente, para não atacar o problema nas suas raízes. Não é caminho de progresso e de futuro.
Tudo isto exige um sobressalto das consciências para uma acção solidária. Como diz o poeta latino-americano Óscar Campana:

Se não há caminho que nos leve,
Nossas mãos o abrirão;
E haverá lugar para as crianças,
Para a vida e a verdade,
E o lugar será de todos
Em justiça e liberdade.
Se alguém se anima, avise,
Seremos dois para começar!

Que este apelo do poeta desperte, na sociedade e nas comunidades cristãs, o empenho para dar apoio concreto às mulheres em situação dramática e proporcionar acolhimento aos bebés que nascem em situações desfavoráveis.
António Marto, Bispo de Leiria-Fátima